A Plataforma DAM – Memória Digital Africana em Portugal tem como principal objetivo pesquisar a história da presença e influência africana em Portugal. Ao investigar e compilar informação dispersa e muitas vezes oclusa num conjunto de acervos e arquivos públicos e privados, a DAM procurará acompanhar historicamente esta presença ausente, sublinhado os seus contributos científicos, artísticos, políticos e socioculturais até aos dias de hoje. E, como tal, contribuindo para: i) a memorialização de processos, momentos e locais históricos relevantes para a história da presença africana e negra em Portugal; ii) estimular futuras investigações em diversos campos do saber; iii) informar e ampliar o escopo das visitas guiadas realizadas atualmente pela Associação Batoto Yetu Portugal aos espaços de memória da presença africana e negra no país.

A SAÍDA DE ÁFRICA
A Chegada de populações africanas é um elemento constante da história de Portugal, desde logo pela proximidade da Península Ibérica ao norte do continente africano pelo Estreito de Gibraltar –uma das rotas utilizadas pelos humanos modernos na migração do continente africano para a Eurásia, que se estima ter acontecido a partir da fase final do Paleolítico Superior, há cerca de 45.000 anos.[i] Em Portugal, testemunhos do Paleolítico podem ser encontrados hoje no Vale do Côa, com um conjunto de gravuras rupestres possivelmente pintadas por populações então negras, de olhos azuis. Debates recentes têm apontado para uma teoria pan-africana do desenvolvimento humano moderno, argumentando que a evolução do Homo Sapiens teria sido inicialmente coeva no continente africano – da Etiópia ao Congo, de Marrocos à África do Sul – para posteriormente se espalhar pelo resto do globo terrestre, através dos estreitos de Bab-el-Mandeb, Sicília, Gibraltar ou da Península do Sinai[ii] em processos denominados saídas de África.[iii] Grupos constituídos por setenta a noventa pessoas, compostos por sábios em boa condição física, guerreiros, caçadores, mulheres, crianças capazes de longas viagens, é o número entendido como sustentável para que este processo de migração na procura de novos locais para viver e perseguindo grandes manadas de herbívoros fosse sustentável.
Se esta presença terá deixado marcas genéticas indeléveis na Península Ibérica, as subsequentes trocas comerciais ou passagem e permanência de povos negros do norte de África e do Médio Oriente, tais como Iberos (VI a.c.) e Fenícios (VIII a.c.), Egípcios governados pelo faraó Taharqa (XXV dinastia) e Cartagineses liderados pelo general Aníbal ou ainda a romanização da Península Ibérica – que trouxe consigo fortes influências africanas bem como exércitos com elevado contingente africano – testemunham o peso destes povos e civilizações na organização política, arquitetura institucional, tecnologia, hábitos de consumo ou na escrita na Península Ibérica.[iv] Ademais, os vários califados mouriscos, constituídos por árabes, povos Amazigh e povos islamizados do oeste africano – oriundos de zonas como a Senegâmbia, entre os séculos VII e XV – trouxeram também diversas mudanças e avanços tecnológicos, agrícolas, médicos, socioculturais e linguísticos que se traduziram até aos dias de hoje no território.
Contudo, estes contributos permanecem bastante invisibilizados na contemporaneidade. De facto, só após-1492 (ano que assinala a expulsão das elites islâmicas e parte destas comunidades da Península Ibérica e a chegada de Cristóvão Colombo à América do Norte) se podem começar a encontrar informações mais consistentes sobre a história da presença africana em Portugal. Tal acontece à medida que se repete o desembarque de pessoas escravizadas em Portugal – iniciado, em Lagos, em 1444 – aumentando substancialmente o número de pessoas negras escravizadas e libertas no país, com forte impacto no património material e imaterial (i.e., conhecimento, arquitetura, religiosidade, fado, fandango). Fundamentais para a acumulação de riqueza, pela exploração da sua vida, as pessoas negras oriundas das mais diversas latitudes do continente africano tornar-se-iam um elemento estruturante na vida urbana e rural da sociedade portuguesa, entre os séculos XV e XIX. A população africana em cidades como Lisboa ou Braga ascendia a cerca de 10%, no século XV.[v] Se é verdade que, atualmente, a ausência de recolha de dados de base étnico-racial impossibilita um retrato preciso da população africana e negra em Portugal, os sociólogos Pedro Abrantes e Cristina Roldão estimaram que, em 2019, pessoas com nacionalidade dos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP) representavam 0.9% da população portuguesa.[vi] Não obstante, sabe-se que a população africana e negra em Portugal é hoje diversa nas suas origens e que os seus contributos se estendem às mais diversas áreas e setores, das artes à produção de conhecimento científico, da medicina à gastronomia, da construção civil à agricultura, da música à escrita, do desporto à conservação da água, entre muitas outras.
A Plataforma DAM visa ser um repositório desta(s) história(s), articulando-se com um conjunto de iniciativas promovidas pela Batoto Yetu desde 1996 e que visam a valorização do património cultural, artístico, social e político africano em Portugal, tais como a pesquisa artística – em particular, nos campos da música e da dança -, a publicação de livros, a promoção e realização de visitas aos espaços de memória da presença africana e negra na Área Metropolitana de Lisboa e no Vale do Sado ou, mais recentemente, a colocação de estátuas e placas que somem a presença africana e negra à toponímia da cidade de Lisboa. Tudo isto, tem como objetivo inscrever e celebrar a história da presença africana e negra em Portugal.
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[i] Alcaraz‑Castaño, 2021.
[ii] Padilla-Iglesias, 2023.
[iii] Tattersall, 2009; Wilshaw, 2018.
[iv] Moreira, 2013.
[v] Henriques, 2008.
[vi] Contudo, os autores assinalam as limitações da sua abordagem já que uma parte importante da população negra com nacionalidade portuguesa ou brasileira não é abrangida por esta estimativa bem como que nem todas as pessoas com nacionalidade dos PALOP são negras (cf. Abrantes e Roldão, 2019).
Bibliografia
ABRANTES, P. e ROLDÃO, C. (2019). The (mis)education of African descendants in Portugal: towards vocational traps?. Portuguese Journal of Social Sciences 18 (1): 27-55.
ALCARAZ‑CASTAÑO, M. (2021). First modern human settlement recorded in the Iberian hinterland occurred during Heinrich Stadial 2 within harsh environmental conditions, Scientific Reports 11 (1): 1-25.
HENRIQUES, I.C. (2009). A Herança Africana em Portugal. CTT Correios Portugal. Lisbon.
MOREIRA, A. R. (2013). “Desorientalização”, mestiçagem e autoctonia. O discurso historiográfico moderno sobre a nação periférica. In M. C. da Silva, Castelos a Bombordo. Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas. Lisboa: Etnográfica Press, pp. XX.
PADILLA-IGLESIAS, C. (2023). Did Humanity Really Arise in One Place?
TATTERSALL, I. (2009). Human origins: Out of Africa, PNAS 106 (38): 16018 –16021.
WILSHAW, A. (2018). Out of Africa hypothesis, in Wenda Trevathan (ed.), The International Encyclopedia of Biological Anthropology, pp. 1-7.